terça-feira, 29 de março de 2011

Discurso sobre o Estado necessário

Desde a independência a estrutura de Estado, a administração directa ou indirectamente, tem vindo a suscitar discussões entre políticos, partidos e sociedade civil. Os debates, mesmo os políticos, têm projectado a dicotomia entre a ideia "mais Estado" versus a ideia de "menor Estado", no pressuposto de que com mais Estado quer-se dizer "Estado-gordo", pouco eficiente, enquanto que "menor Estado" quer-se dizer Estado com poucas instituições - um Estado eficiente, que consome menos recursos públicos e disponibiliza parte desses recursos para a sociedade. Associada à questão da natureza do Estado (menos e mais Estado) que queremos ter em Cabo Verde, todos falam ou falaram já de "reforma do Estado", ancorando o discurso de um Estado necessário, adequado às condições do país. Para mim, o Estado de Cabo Verde deve ser um "Estado necessário", sim, sendo um Estado mínimo, com poucas instituições, eficiente, que projecta uma orgânica simples, percepectivel aos olhos dos cidadãos, ao mesmo tempo que conserva a memória, que não muda, só por mudar, mas que jamais recusa a ideia de mudança quando necessário e inevitável, ajustando tais mudanças ou essas reformas aos objectivos de curto, médio e longo prazo em direcção à ideia de estabilidade, onde, por exemplo, a constitucionalização dos ministérios, designadamente os da soberania possam assumir-se como valor nuclear no arranque para a formação do Estado e da sua natureza. Poderíamos estar muito longe a discutir o tema, pois nessa perspectiva, já se criaram até ministério com o nome de ministério de reforma do Estado, para ver se é desta ou daquela vez que encontraremos o Estado que queremos. Ainda assim propomo-nos fazer mudanças que não muda nada. Não existiu nenhum governo desde 1975, que não incluísse, no seu programa, a ideia-força de reforma do Estado e/ou da necessidade de cosntrução do Estado, presume-se das instituições. Parece, por isso, politicamente giro falar-se dela e é bonito mostrar os outros que também aqui, em Cabo Verde, nós falamos de reforma do Estado - que também aqui nos divertimos com a ideia de produzirmos narrativas a respeito, mas que infelizmente não é possivel reformar o Estado se não sabermos com clareza que objectivos pretendemos perseguir. Bons discursos foram feitos sobre o tema, mas quando viramos a página encontramos a situação na mesma. As vezes mudam-se os nomes dos serviços para ver se esse serviço muda a substancia à partir da mudança do nome e bate no mesmo. E, então, porquê que a verdadeira reforma nunca acontece? Será que é por falta de interpretação objectiva da realidade das coisas!. Pode ser que sim, pode ser que não! Sabemos que de um Estado totalitário, sem constituição, dirigido por um regime de partido único, a um Estado de direito democrático ou um Estado liberal de direitos, a ideia-força genérica que subsiste reside no facto de hoje, mais do que nunca, Cabo Verde precisaria de um Estado necessariamente moderno que, reconhecidamente, assumiria, na sua estrutura, a conclusão do processo de desenvolvimento da condição humana e lhe dê estabilidade, enquanto processo e dinâmica culturais, que procura atingir estádios de não retorno dessas conquistas, logo da sua irreversibilidade, e que se para isso se tornar importante realizar reformas, então que se reforme o mais brevemente possível. Sempre se pergunta que Estado queremos ter em Cabo Verde? À ideia de reforma do Estado, muitas vezes pensada, não se pode, liminarmente, contrapôr-se ao medo de que, eventualmente, “reforma” traz implícito o risco de “desmantelamento” das instituições, para no seu lugar se colocar interesses privados ou significar desprezo pelas funções Estado - quem, em Cabo Verde, desprezar o Estado, acaba desprezando indirectamente os cidadãos. Não é necessário fazer apologia ao Estado, mas reformar o Estado não pode significa (repito) desprezo pelas suas instituições, nem pode, por outro lado, in-extremis, confundir-se com a ética da liberdade, sobre a qual corre os princípios liberais, como os conhecemos dos livros. Desejar um “menor-Estado” não pode ser, por outro lado, reduzir as instituições do Estado em detrimento dos interesses privados, que, muitas vezes, uma certa ideia confusa do "liberalismo” dá como adquirida, em como estando enquadrada com a ética da responsabilidade do pensamento liberal. O pensamento liberal não é isso, ensina-nos os grandes pensadores do liberalismo. Reconheço aqui divergências de pensamento, com algum sector liberal ou simplesmente empresarial cabo-verdiano, inclusive dentro do MpD, pois nem sempre quando se alimenta uma ideia privada, está-se a alimentar a ideia liberal. Muitas vezes corre-se o risco de que quando se mistura uma certa ideia de Estado, sobretudo quando é feito e defendido pelos privados, passar-se a imagem de que se deve comprimir o Estado em função de interesse dos privados e quando assim é nem sempre as coisas correm como esperado. A mim me parece que a crise que hoje assistimos dos Estados-nacionais coloca em risco a estabilidade das sociedades e dos seus processos culturais e projecta uma ética da reforma que tem que ser compatível com os desígnios de cada sociedade. Em Cabo Verde as coisas não são diferentes. O Estado, enquanto entidade maior de qualquer sociedade, tem de ser forte e Cabo Verde não pode ser excepção à regra. Antes um Estado necessariamente forte do que o Estado fraco. As reformas constitucionais que foram sendo introduzidas acabaram por permitir a construção de um tipo de Estado em Cabo Verde que é absolutamente necessário, que se funda, hoje, nos princípios da República (numa República que se pretende moderna) e nos princípios do Estado de direito democrático, de sorte que quem propuser à sociedade uma visão de reforma que coloca em crise as instituições públicas, como forma de gerar espaços para a penetração de interesses privados, perde o debate. Na minha opinião deve mesmo perder o debate, porque aqui em Cabo Verde as instituições do Estado são também conquistas do povo e as reformas devem servir para qualificar essas conquistas e não elimina-las. Nós temos um Estado que assumiu a obrigação de estar em todo lado, porque era simplesmente necessário. Teria de ser assim. Acabou por ser um Estado omnipresente, que tende no passado e ainda tende, no presente, a substituir, no sentido de liderança e de responsabilização, à sociedade, pensando, muitas vezes, que ele é a sociedade. Através de uma administração possível instalada logo no inicio da sua existência, o Estado de Cabo Verde soube ser entidade maior (a única com credibilidade) que, depois de sufragada pela vontade democrática do povo, como tem vindo acontecer, tem-se erigido na expressão maior da vontade colectiva (social, politica, económica e cultural) do povo e nação cabo-verdianas, numa sociedade que firmou ao longo da história por saltos de “dissidências”, enquanto reduto e sintese do comportamento geral dos seus cidadãos. O Cabo-verdiano, por ser excessivamente individualista precisa da ordem, de estabilidade e de uma instância de planeamento estratégico do seu futuro e isso, na minha opinião, só se consegue se formos capazes de construir um Estado necessário, em resultado das dinâmicas culturais que se processaram entre nós, ao longo dos tempos. Um Estado necessário ajustado ao território historicamente herdado e ao território imaterial que decorre da condição extra-territorial da nossa identidade, enquanto povo e nação. Um Estado inexoravelmente necessário que tem o homem cabo-verdiano como fonte inspiradora da legitimidade dos seus processos e trabalha para o seu bem-estar. Um Estado capaz de enquadrar o homem e ao mesmo tempo combater os seus vícios em detrimento da valorização do mérito e da sua qualidade. No fundo um Estado lúcido e moderno. De idade média, aos nossos dias, produziram-se teorias variadas sobre o “Estado”, enquadradas nuns casos por “ciência do Estado” e noutros casos por “teoria geral do Estado”, sempre com a preocupação de se traduzir e assumir a conformação institucional do princípio da vontade geral, da produção do bem comum, da produção do direito e da justiça social. Um Estado defensável não pode ser Estado particular, pensado e querido apenas por nós (ou por um grupo especifico de interesses), mais sim um Estado necessário, que é aquele cuja pretensão é a de ser útil à sociedade, colocando-se ao serviço das pessoas – um Estado tão próximo quanto possível dos cidadãos e ao mesmo tempo tão equidistantes dos seus vícios e dos seus interesses particulares. Não se pode construir um Estado, pensando que esse mesmo Estado tem de ser similar ao Estado dos grandes países. Reforma não pode ser vendida, enquanto ideia, se considerarmos que elas trazem o risco de desmantelamento do Estado ou tem como propósito exaurir as funções do Estado em detrimento dos privados. Reformar pode significar ajustes a cada momento em função dos objectivos que se pretende atingir, como soi dizer-se. Na nossa sociedade o Estado tem de existir e tem de ser forte e substantiva na realização do bem comum. Nessa narrativa, a contra posição entre o Estado e os privados não tem lugar, nem se quer devem existir. Os privados são complementos activos do Estado na produção do bem comum. O Estado existe porque existe o privado e não o inverso. A reforma do Estado pode e deve ser vista como um caminho para aumentar os níveis de eficiência e de eficácia dos serviços que o próprio Estado, que se pré-dispõe a prestar à sociedade. Por isso, o que verdadeiramente importa é que o Estado seja também um reduto dos cidadãos e isso só será possivel quando estes disserem que este o Estado que queremos. É este o Estado que cobre as nossas necessidades de sociedade.

Sem comentários: