sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A ultima revisão da constituição cabo-verdiana pode ser tomada como um prólogo para a III República.

A forma rápida e as vezes extraordinária como a política se evoluiu, nos ultimos anos em Cabo Verde, permitiu que, na última revisão da constituição, através de uma negociação possível entre os dois maiores partidos (MpD e PAICV), se tornasse possível produzir e fixar em texto constitucional alguns dos consensos políticos gerados, que podem vir, de certa forma, a enquadrar e influenciar a nossa sociedade, permitindo a libertação das energias individuais e colectivas em prol do desenvolvimento desejável do país: foi um estímulo gracioso que concorreu para a procura de aperfeiçoamento de um “modelo/sistema político que aponta para o cumprimento dos ideais da independencia e da democracia, sonhado pela geração que nos antecede”, e que parece ir ajustando à realidade "antropológica", política, económica e cultural da sociedade cabo-verdiana e que ao evoluir-se pode vir enquadrar os desígnos de uma nação muito especial e diasporizada.

Pode-se ler nesse esforço, cedências políticas e ideológicas de ambos os lados, associando vários factores conjunturais de natureza parlamentar e governamental, projectados através da conjugação da liberdade com independência, da liberdade com a democracia e da liberdade com o processo de desenvolvimento, pois é certo que na busca da liberdade, enquanto fonte de inspiração e meio de realização individual e colectiva, o povo cabo-verdiano conquistou a sua independência política em 1975, a democracia em 1991 e, de forma intemporal, vai prosseguir o seu processo de desenvolvimento.

Do lado do PAICV e do Governo, o objectivo proposto foi integralmente cumprido, com a recente revisão, pois ao menos o Paicv passou a ser, como, de resto se propunha, desde logo, partido da independência, da liberdade e da democracia, enquanto se considerou sempre ser partido da independencia, capa sobre a qual projecta a sua ideologia na sociedade cabo-verdiana, em certa medida em contraposição da democracia. Parece que ninguém jamais vai poder utilizar estes ganhos no combate politico contra o outro, pois deixa de fazer sentido, embora subsistem visíveis o que se pode designar como sendo as “cominações da República”, que, de um lado e de outro, vai-se mantendo, enquanto elemento performante de uma “nação especial e das diásporas”, influenciada de forma fundante pela cultura de dissidências que determinam as tais cominações da República evocadas e que do ponto de político, cultural e ambiental desafiam a própria unidade e coesão politica da nação.

A unidade e coesão nacional que acabam sendo vítimas dessas cominações que são abstratas e difusas, sendo difícil, as vezes de serem identificadas; os consensos políticos expostos durante a negociação que teve lugar na Comissão Eventual de Revisão, constituída por deputados da bancada do Paicv e do MpD, deixam antever que o debate contitucional do pais não terminou e admitir, que vai haver, no futuro, outra oportunidade de revisão, em que poderá ser considerada a oportunidade da diaspora e do processo de desenvolvimento integrado do país.

Ha que escrutinar a instalação de uma serie de verdades políticas que se formaram na sociedade cabo-verdiana, que nunca foram discutidos e debatidos com ninguem e que tendem a ser consideradas como verdades definitivas, muito embora não o sejam na prática e que ao longo dos tempos foi sendo transportada por várias gerações de políticos e tem vindo a influenciar de forma destorcidas a nossa realidade social, politica, económica e cultural.

Após a última revisão, várias questões foram surgindo, que acabaram por ficar sem respostas e que importa sejam politicamente respondidas, no próximo futuro.

Para além da vontade explicita do PAICV em adoptar um comando constitucional que permita "extraditar cabo-verdianos" quebrando, pelo primeira vez o sentido de pertença, da unidade e coesão nacionais, e o direito de vinculo antropologico e cultural de um individuo à sua comunidade e à sua nação, surgiram várias outras. Desde logo: a) saber se ficamos ou não, com um sistema constitucional moderno, denso, ideal, estável, quanto basta, imutável que assegura a plena (re) integração dos cidadãos, a unidade e coesão nacionais (entre o pais e sua diáspora), reduzindo o impacto das dissidências, enquanto expressão que resulta da negação do outro, assegura o crescimento económico harmonioso com qualidade ambiental, assegura a igualdade de oportunidades, o acesso e a não discriminação dos cidadãos em relação ao rendimento disponível, a sua distribuição e a justiça social em prol do desenvolvimento nacional?

b)Será que o sistema constitucional vigente, resultado da revisão, responde ao pensamento estratégico de muito longo prazo, que se afigura necessário para o país, por exemplo, num período de 50 anos, tendo em consideração as questões que decorrem das oportunidades demográficas de Cabo Verde, dos recursos indispensáveis ao processo de desenvolvimento, da escassesz de recursos e da falta de confiança generalizada dos cidadãos em relação ao território nacional?•

(c) E será que a revisão de 2010 encerrou as dinâmicas políticas e culturais da 2ªRepública, à semelhança do que acontecera com a ruptura política e constitucional verificado em 1992, aquando da aprovação da actual constituição, em relação ao sistema político anterior de partido único, vivido no país nos primeiros 15 anos de independência? E mesmo admitindo que a última revisão encerra tais dinâmicas da 2ª República, será que se pode considerar que o debate negocial ocorrido em torno da revisão constitucional é prólogo da 3ª República?

Não existindo, por agora, tais respostas, há que deixar o repto, apontando para que o diagnóstico responda as questões suscitadas. No fundo para o conhecimento da realidade social, política, económica, cultural que cada dia se torna mais complexa e que implicam apreender com o legado do bom “arquitecto”: que olha para a realidade construída; reconhece o impacto social, económico, político e cultural de tais construções, dos seus traços dos seus pontos fortes e fracos e das suas arquitecturas; respeita os equilíbrios existentes, sugerindo, sem receios, ou a sua conservação holística ou a sua reconstrução, numa perspectiva de conservação e de valorização patrimonial do que existe, planeamento e desenvolvimento de novas construções.

Independentemente de as respostas poderem ser múltiplas e variadas, a verdade política básica permite reconhecer que hoje a realidade política e constitucional em Cabo Verde é diferente da realidade projectada com a constituição de 1992, mormente a realidade deixada pelo MpD em 2001. Ela é muito diferente: primeiro, porque o país trilhou novas etapas e projectou novos elementos; segundo, porque ocorreram, já, duas revisões desde que a constituição fora aprovada em 1992. De tal sorte e ordem que essa realidade política se expressa no comportamento interior e exterior dos dois maiores partidos, MpD e PAICV, e sobretudo através do Paicv, que viu nessa revisão uma oportunidade de cedência ideológica à democracia, sem perder a face, em
relação à forma como se posicionara aquando da aprovação da constituição de 1992.

Não se pode dizer, em bom rigor, que o MpD, os restantes partidos políticos e toda a sociedade cabo-verdiana não saíram a ganhar com a revisão de 2010, pois fez-se a justiça política e ideológica, na medida em que o Paicv, ao aceitar fazer essa integração constitucional, acabou por se deixar convencer que tinha de deixar de diabolizar ideologicamente os outros partidos e que os restantes partidos também se formaram em cima dos valores civilizacionais e culturais acumulados com a independência nacional e, em consequência disso, são, em igualdade de circunstancias, partidos da independência, partidos da liberdade e da democracia e que podem concorrer em igualdade de circunstâncias com o Paicv, na formulação de estratégias que enformam a escolha do melhor modelo de desenvolvimento possível para o povo de Cabo Verde, por isso com legitimidade e em condições de apresentarem propostas alternativas para governação do país: em conclusão, pode dizer-se que com a revisão constitucional de 2010, a sociedade terá produzido o que se pode considerar o prólogo da III República.

E a segunda República foi marcada pela independência e pela busca das liberdades através da adopção da prática democrática, reflectidas na constituição de 92. Hoje podemos pensar na 3ª República, como forma de mostrar o caminho que as gerações vindouras poderão vir a trilhar e enquadrado por essa estratégia implícita, que pode determinar essa nova visão do país e, envolvendo as grandes teses e opções de uma possível 3ª República, saberemos projectar para o futuro, num regime constitucional durável, as mesmas motivações e apelos que estiveram atrás da luta pela independência nacional, que motivaram a luta para a democracia e que irão assumir e luta pelo desenvolvimento sustentável.

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