terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Relatório de análise Social “sobre dissidências em Cabo Verde”: “UMA REFLEXÃO SOBRE A SOCIEDADE CABO-VERDIANA

Qualquer analista atento olha para a sociedade cabo-verdiana e não temeria concluir-se que ela se caracteriza por ser uma sociedade - tipo sociedade em mudança e em transição, que acumula excelentes resultados no capítulo do índice de desenvolvimento humano, que parece, não obstante, estar anestesiada por um tempo de “ressaca pós dissidências de tipo sócio-orgânicas, ocorridas nos últimos 15 anos, que acabou por impor uma ordem social e politica segmentada ao País e que transformou a sociedade cabo-verdiana numa “sociedade de minorias”, profundamente dependente do Estado, agravada pela condição estrutural de um Pais descontínuo e diasporizado. A segmentação, que se transformou numa malha política e social complicada, gerida ao milímetro por quem tem vindo a tirar partido ganhador dessa realidade, atingiu a própria Igreja Católica (maior instituição do País) que acaba também ela, dividida de forma insólita, em dois dioceses, com dois Bispos, quando o numero de católicos no País não justificaria a adopção de duas Dioceses. Estará também a Igreja Católica cometida a submergir nessa realidade , de forma inconsciente e sem querer se deixar ser contagiada por um esquema de dividir para reinar, que vem da epoca colonial e que parece estar submetida a uma estratégia de segmentação de um País, que já é insular, ditado pelos fantasmas revolucionários, da ideia de que quanto mais divisível for melhor em contraponto com a necessidade de geração de consensos e os fantasmas dos nacionalismos surgidos na esfera do poder, repetidas nos ditos segmentos sociais minoritários, que em Cabo Verde parecem ter sobrevivido e permanecem, na nossa opinião, como um perigo para a estabilidade social?

Podemos ser tomados por alguma injustiça de análise do ponto de vista histórico, mas acreditamos que a Igreja Católica, sendo sábia, não se deixará subemergir por qualquer estratégia temporal adoptada, inclusivamente para a recuperação do poder, pois ela cumpre sua própria estratégia e tem como objectivo de servir todos os homens e mulheres. Mas, em Cabo Verde o tempo da Igreja Católica parece, estranhamente, coincidir com a expressão constituinte do esquema, que se pretende seja cultura, de dividir para reinar, ao que dá a ideia de ter-se perdido aquela dimensão extra-temporal, permitindo, em vez de se reforçar a Diocese de Cabo Verde, com mais um Bispo e um Cardeal, preferir-se pela designação de mais uma Diocese, faltando, no entanto, compor-se a pirâmide que confere plenitude a Igreja Católica de Cabo Verde, atribuindo-lhe maior capacidade de decisão local, nomeando um Cardeal. O centralidade cultural, politica e institucional do País deve ser perseguida. De maneira que discussão sobre uma matéria que, ao longo dos 30 anos de independência assumiu, entre outras coisas, características de fenómeno de poder e ameaça sistémica, marcada pelo binómio “negação/renovação”, ora com características positivas, porque com sentido de oportunidades e assumidas pela maioria; ora negativas e às vezes perversas e colidentes com o próprio sentido de interesse nacional - verifica-se, com preocupação, que esse dado parece subsistir hoje, como realidade cultural e política relevante das nossas Ilhas, porque marca para o bem e para o mal o País moderno que pretendemos construir, estando na base das nossas assaz dificuldades de gestação de consensos, na gestão dos assuntos de Estado e inclusive na gestão de estratégias das mais variadas organizações societárias, cooperativas e associativas (…) impondo medos diversos a diversos níveis que na nossa perspectiva são pontos fracos e fortes de uma sociedade em mudança, pela grande possibilidade que apresenta de albergar os instintos culturais da própria mudança. [Banks, J. & Banks C. (eds.).(2004). Education - issues and perspectives. John Wiley and Sons].

Discutir a problemática de dissidência é procurar entendê-la enquanto forma de afirmar uma negação (…) pois, enquanto tal, é quase sempre, assumidamente, um passo, fora de comum que contraria a ordem vigente e representa uma forma de cúmulo e/ou de exagero em que os próprios dissidentes assumem, eles próprios, um caminho diverso do caminho da maioria; quase nunca se ajustam aos meios disponíveis [negando-se a si próprios], mormente quando pretendem impor-se, enquanto minoria, presumindo-se poder fazê-lo. Entretanto, sabe-se do manual que a “democracia existe para defender as minorias, mas quem deve assumir as consequências decorrentes da defesa dos interesses minoritários é a maioria, que detém todos os meios materiais e espirituais, não a minoria que nunca estará em condições de assumir tais consequências”. Entra também nas derivações possíveis e relacionáveis com a presente reflexão a questão da dissidência do Estado; o “conceito do proto-Estado”, a ideia do “Estado e Sociedades párias” [Estados e Sociedades não plenamente emancipadas], enquanto fautores da instabilidade social, política e económica, na opinião de Remi Kanazi.

DISSIDÊNCIA: TRAÇO CULTURAL CABO-VERDIANO

Nas sociedades contemporâneas, constituídas por subsistemas, dificilmente se encontram realidades sociais e políticas em que dissidências inorgânicas, quando ingenuamente incorporadas, não interponham alterações brutais às organizações, na medida em que quase nunca acontece que dissidências dessa natureza, incorporadas numa organização, se numa posição de liderança, assumam a totalidade da natureza da organização, sem ocorrerem riscos de desvios dos elementos fundiários da própria organização. As dissidências, especialmente as inorgânicas, quando incorporadas numa estrutura, sem cedências, convocam as minorias, que por seu turno nunca assumem as consequências que resultam da defesa do seu próprio interesse: tais consequências devem ser assumidas pela maioria, que dispõe de recursos para o efeito. Passe o jargão académico de “sociedade em construção e em mudança”, o fenómeno da dissidência na nossa sociedade parece constituir-se numa das nossas marcas.

Certos autores designam-no de “pontualismo social”; parece ser uma das características do cabo-verdiano, sendo por demais evidente que é quiçá por causa disso que adoramos imitar e raras vezes conseguimos preservar um segredo; somos parcos em solenidades e naturalmente informal; o nosso sentido de confidencialidade é sempre relativo; guardamos o que se chama segredo público; o que toda gente já sabe, vai saber ou tem que saber; e somos instáveis, frágeis nas convicções e muito pouco solidários. Portanto, o cabo-verdiano, é a sua idiossincrasia um dos maiores desafios do nosso capital social. Concorde-se ou não, a dissidência, enquanto traço social e cultural do cabo-verdiano, parece ter vindo do período colonial [não se trata de uma realidade social manifestada e vivida apenas no período pôs independência]. Hoje revela-se através do medo de falar; do anacrónico “toma cuidado” com isto e/ou com aquilo através de uma relativa sofisticação imposta pelo medo de falar e de discutir soberanamente.

Tais marcas, apesar de tudo, têm conhecido um difícil processo de “inscrição” cultural, [já agora citando José Gil] e têm sido nulas na acumulação de novos valores, em termos mesmo de regeneração de possibilidades de influenciar a mudança do nosso comportamento social colectivo. Hoje parece claro que existe um receio sepulcral e medos repugnantes na sociedade cabo-verdiana, que urge combater e anular. Em Santiago, mais concretamente na cidade da Praia e ainda mais a nível da classe média aí instalada, esse medo é ainda maior, porque aí é sabiamente gerido pelos diversos poderes constituídos e pelos micro-interesses que mutatis mutandi atravessam toda a sociedade praiense, inclusive a sociedade política, e depois reduz o próprio espaço de expressão democrática. Tornou-se vulgar dizer-se: se você falar de política, alguém dir-lhe-á tem cuidado! E claro está, quando assim é, manda o bom senso, que se deve ter mesmo cuidado! Mas convenhamos que é definitivamente uma forma de pontuar o medo.

O MEDO DOS CONTRA-CICLOS

Para nós, é a mentalidade de dissidência e de revolta revolucionária que nos força a tal comportamento, pelo que ela deveria sugerir melhor atenção das elites do País, pois faz parte já do traço característico da forma como vivemos e como gerimos o nosso espaço público, reduzindo as dinâmicas de acumulação de memórias sociais [os saberes e as aprendizagens], estando sistematicamente a forçar o medo de aparecimento do “contra ciclo” inevitável à mudança. Precisamos, pois, de mais maturidade e de encontrar um denominador cultural comum e seu ponto de partida referencial, de não retorno (a ideia de fundo, como dizia Renato Cardoso), para nos transformarmos num povo que produz cultura para o desenvolvimento, sem dissidências; que seja veículo transparente dos sistemas de poderes; produto estratégico capaz de anular todas as tensões sociais [contra todas as imitações ou cópias indevidas de produtos culturais e/ou pirataria] prejudiciais na afirmação dos segmentos sociais mais frágeis da nossa sociedade, a partir das periferias de cada uma das nossas ilhas, no conjunto do País e na emigração (diáspora).

Outrossim há que dizer que tais guinadas, que certos Antropólogos dizem configurar-se nas características das “proto-sociedades”, parecendo estar na origem do modo desagregado como os cabo-verdianos assumem o seu destino, tem atrapalhado a construção dos grandes consensos nacionais: às vezes temos um caminho, mas não sabemos onde vai dar esse mesmo caminho, ou melhor - onde termina, apenas por falta de consensos. Assim sendo, em Cabo Verde a dissidência cultural, política, económica, social e religiosa, embora não publicamente expressa, manifesta-se involuntariamente em todos nós, podendo ser assumida, sem grandes riscos de erro, como um dado identitário da cabo-verdianidade, traço de fundo da forma como pensamos, como agimos e como olhamos o País e resto do mundo. A problemática da “protodissidência” na abordagem de “Fukuyama” ou comportamento que os Psicólogos chamam de “imitativo”, monitoriza sistematicamente o medo, porque parcial, às vezes manifesta-se de forma totalitária, com feição liderante aqui ou ali, podendo ser poder a qualquer instante, produzindo receios múltiplos e medos da contraposição, matando o poder do diálogo, do debate, da discussão e dos pluralismos orgânicos que regulam a vida nas sociedades democráticas (…), “diminuindo os anseios aplicativos da liberdade e de livre acesso aos sistemas garantísticos estabelecidos, por parte dos indivíduos”, como afirma Le Winter no seu livro “Democracia e Nacionalismo”.

A dissidência é uma forma da manifestação do medo de dialogar, de ceder, de perder e de ganhar e nada mais na perspectiva de Rene Dumond Sociólogo Francês.
Esses medos, que por razões de insegurança urbana se recrudescem entre nós, vão-se tornando em medos subjectivos gerais, sociais, económicos, políticos e culturais de índole sistémico, tendem a ser inultrapassáveis. Castra a iniciativa privada e mata o empreendedorismo. Tendem de forma gravosa a impedir o País de agigantar-se na criação de instâncias de acumulação de consensos e de novos valores, introduzindo a desconfiança, condicionando, em definitivo, o nosso modo de vida, porque redutor do nosso espaço público de referência - citando de novo José Gil, (..) urge considerar a inscrição dos processos de dissidências ocorridos ao longo da história em Cabo Verde, “para se poder chegar ao necessário catarse, impedindo que elas se transformem em formas de combate político na conquista ou manutenção no poder”.

O pressuposto é valido. Mas, sendo as dissidências manifestações gregárias de um grupo. as suas verdades tendem a não se aculturarem, a não ser que se dê benefício de dúvida que são acções positivas, desejadas pela maioria, que assumem de pronto as suas consequências e sejam assumidas como atitudes de poder em prol de uma qualquer maioria social, económica ou cultural, porque com dinâmicas positivas: aí, sim, vinga e devem ocorrer processos de “inscrições”: De contrário, pode ser considerado que as dissidências são acções de consequências nulas a longo prazo e sem estéticas etimológicas [Castells, M.(2002). A sociedade em rede. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian].

A DISSIDÊNCIA TEVE SEMPRE EFEITOS POSITIVOS

Em Cabo Verde, os actos dissidentes conhecidos [todos], quando incorporados como cultura de maioria, tiveram efeitos positivos conjunturais no médio prazo, embora novas manifestações de dissidências tenham ocorrido, sempre, na ponta final desse médio e longo prazo, quando as consequências dessas manifestações dissidentes deveriam estar, presumivelmente, consolidadas, pois estamos em face duma sociedade em mudanças. São as dissidências não inscritas que têm sido de consequências nulas, porque postulam marginalizações e isso não é bom para o fomento da pluralidade e, logo, mata o consenso na diferença, sobretudo num país pequeno como o nosso, onde as pessoas são indissoluvelmente marcadas por razões da sua opinião politica e preferências partidárias.

Do ponto de vista político, discutir a problemática de dissidências em Cabo Verde é, antes de tudo, pôr o dedo na ferida; para evitar mal maior; é terapia a adopção de uma cultura de negociação, cedências mútuas; como ensino René Dumond, em democracia “as vitórias e derrotas são sempre relativas, não existindo nem derrotas e nem vitórias definitivas e há derrotas que são autênticas vitórias”, parecendo evidente que é a alimentação da cultura de dissidências não inscritas o grande responsável pelas exiguidades das grandes causas nacionais e pelos nossos fracassos. A questão é complexa. Há que reconhecer. Por isso, sua discussão em forma de relatório social, pois parece que a tendência hoje é do seu ressurgimento, agravada pela tradição oral do povo, pela ileteracia cultural que, quando no poder, divide para poder reinar; esconde fragilidades diversas; amesquinha o indivíduo e gere o quotidiano do medo por via da ditadura do silêncio, através do “reducionismo dos espaços públicos” e de um rentismo cultural anti-desenvolvimento. Uma espécie de ângulo zero na acumulação dos valores. Combater dissidências é, antes de tudo, exercer a democracia, fazer valer o exercício da liberdade, gerir a própria liberdade como recomendava Fernando Pessoa na sua tese sobre liberalismo: “ deixar o individuo pensar o que quiser, dizer como e quando puder, no estrito termo do respeito pelo seu semelhante de pensar o que quiser e dizer como e quando puder”.

Assim, podemos devagarinho assumir as dissidências como opções das maiorias sociais que, ocorridas, pontualizam a nossa cultura com o que, aliás, de mais nobre têm os cabo-verdianos: a soberania do seu individualismo; a sua noção de propriedade; a soberania do seu pensamento livre; a sua relação com as dificuldades e com o sucesso; a sua capacidade de convocar parte do todo e a essência do todo; no fundo, a sua relação com a vida - e assim daremos “cheque mate” nos risco de dissidências e seremos mais unidos, mais coesos, mais conciliadores e muito mais fortes.

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