quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

O fenómeno da pobreza relativa em Cabo Verde é uma questão de regime ou da essencialidade da própria sociedade e/ou do Estado?

Atrevo-me a responder dizendo que o fenómeno da pobreza relativa em Cabo Verde faz parte da essência da nossa sociedade, mas também é uma questão de regime e da sua essencialidade, sendo a sua completa eliminação dever fundamental do Estado de direito democrático. As estatísticas indicam que a pobreza em Cabo Verde vai deixando de ser absoluta para se ser cada vez mais relativa, significando isso que a pobreza deixará de ser consequência da ausência total de riqueza, para passar a ser consequência da ausência momentânea de rendimentos, da sua exiguidade e da sua escassez. Por outro lado, a pobreza parece ser endémica, profunda e difícil de combater se não for por via de reformas estruturais que envolvam todos os agentes económicos e por via de uma maior vigilância por parte do Estado, da sociedade, das suas instituições e dos cidadãos em geral.

A pobreza relativa é muito mais perigosa para as pessoas do que a pobreza absoluta, pois que provoca entorses e formas escondidas de vida ou mesmo vergonha social e reflecte, exactamente, um estilo de vida de todo muito negativo para as pessoas, para as famílias e para a sociedade. Uma pessoa na situação de pobreza relativa, quando tem fome não diz a ninguém, porque pode sentir-se envergonhada, pois que a fome não é compatível com a sua própria aparência. Um pobre relativo aparenta ser um não pobre, porque tem em sua casa um televisor, telefone fixo e móvel, anda limpo e bem vestido, mas quando adoece dificilmente avia uma receita e não consegue educar os filhos se o Estado não lhe disponibilizar recursos, não tem qualidade de vida. Esconde a falta momentânea de rendimentos e finge que não tem problemas porque sabe esconder a realidade da sua vida, o que dificulta ainda mais o tratamento, enquanto mal social.

Taxativamente pode dizer-se que o grande responsável pela forma pacifica como uma parte significativa da população cabo-verdiana vive economicamente e a empobrecer-se no dia-a-dia por falta de rendimentos, se deve à forma como o Estado interpreta e gere os mecanismos de salvaguarda dos “direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, à forma omnipresente como trata o desenvolvimento das suas relações com a sociedade e olha para a sociedade, e como vigia a aplicação do próprio sistema constitucional vigente. A Constituição da República normaliza essa relação, nomeadamente a partir do seu Capitulo III, fixando limites em relação ao exercício de um conjunto de direitos sociais. Porém, o Estado parece extravasar, por omissão, tais limites constitucionais, ignorando-os e quiçá incumprindo a própria lei fundamental, na administração desses recursos constitucionais.

Nesse sentido há muito trabalho politico a desenvolver e há que imprimir mudanças profundas no sentido de estabelecimento de um novo equilíbrio entre os diversos subsistemas de solidariedade, através dos quais os cidadãos ocupariam definitivamente o centro das preocupações de todas as políticas públicas, fazendo com que o Estado se centre na sua verdadeira missão, desenvolvendo a regulação, como ratio fundamental, e uma nova cultura de relação com a sociedade e nunca, em nenhum momento, procurar substitui-la. Importa dizer, ainda, que parece ser justo reafirmar que a conduta geral do Estado em Cabo Verde deve mudar, para que o nosso comportamento colectivo em relação a tudo o que nos rodeia possa também mudar: uma mudança que, como dizia Francisco Sá Carneiro, nos obriga a assumir que quando estamos a governar, exerçamos o consulado governativo, numa perspectiva de que quem nos vai substituir, no futuro, somos nós próprios e não os outros ou melhor não os nossos inimigos, mas sim e no mínimo, os nossos adversários, por quem devemos nutrir e cultivar respeito.

Ora a situação de pobreza relativa na qual vive uma parte significativa da população cabo-verdiana pode vir a requerer uma nova atitude politica ao Estado: uma espécie de exigência de fundo, uma terceira refundação da sociedade e mesmo da Nação. Na medida em que tenho por mim que i)a primeira refundação da Nação Cabo-verdiana terá, porventura, sido sintetizada com a independência nacional; a segunda com o advento da democracia e a terceira irá ocorrer com o desenvolvimento sustentável, numa perspectiva da completa eliminação da pobreza enquanto forma de vida, introduzindo a ideia de absorção das oportunidades de desenvolvimento. Por conseguinte, essa mudança politica exigida na forma e no conteúdo, requer lideranças fortes, que não titubeiem em nenhum momento perante o imperativo de eliminação da pobreza, popularizando a correcta essência do Estado em prol dos cidadãos e da sociedade: assim sendo, nenhum Líder político do nosso tempo se deva furtar a essa obrigação constitucional, sob pena de ele falhar para com o País e obrigar-nos a falhar colectivamente perante a história, fazendo com que as facturas do presente momento vierem a ser suportadas, injustamente, pelos nossos filhos, pelo que se torna num direito fundamental exigir mudança de atitude e temos mesmo que arrepiar caminhos.

Para que sociedade cabo-verdiano vá de novo à procura dos seus fundamentos não podemos enjeitar tarefas e as soluções devem ser construídas numa perspectiva de prevenção social e não de correcção social, pois aqui mais vale prevenir do que remediar e temos que ser capazes de assumirmos colectivamente reformas constitucionais, que permitam a integração de todos os Cabo-verdianos residentes no País e na Diáspora no circuito económico do País, eliminando o sector informal, dando estabilidade fiscal a todos os concidadãos, no sentido de uma nova arquitectura de valores sociais e culturais e de uma outra forma integração social das famílias. Incomoda muito saber que existem mais de 130 mil pessoas a viverem com menos de 120 escudos por dia - são mais de 25 mil famílias. Incomoda ainda muito mais saber que o Estado olha para esse fenómeno e assobia para o lado. Notar que num agregado familiar com 5 pessoas, se o seu rendimento diário é de 120$00 significa que no final do dia entram para o rendimento daquela família 600$00. Basta pensarmos o que é que significa confeccionar três refeições diárias com 600$00?

Politicamente pensando é redutor a forma como o Estado olha para a situação da pobreza em Cabo Verde, mormente através do Programa de Luta Contra a pobreza, que tende a negar a natureza e a missão do próprio Estado. Esse deve ser, sempre, resultante do legítimo escrutínio popular e não o contrário, por isso o Estado não pode permitir que um qualquer programa pugne pela alteração dessa realidade institucional e da sua obrigação constitucional. O Estado tem que vigiar os efeitos secundários do referido programa, designadamente se a sua virtuosidade, porventura, se estará ou não a provocar e a garantir a mobilidade social sustentável? Se isso não está a acontecer importa reconverter esses mesmo programa, pois o dinheiro que se gasta nesse programa se reconvertido em capital reprodutivo: i) Permitiria adoptar um valor para o salário mínimo nacional e normalizar as condições de trabalho, assim como garantir o financiamento duma relação económica saudável entre todos os agentes económicos e sociais – travando a especulação gratuita, combatendo a corrupção e o lucro fácil e a desresponsabilização do Estado, das Empresas e do Capital s; ii) Permitiria, ainda, fazer com que as prestações sociais de solidariedade existentes no País, deixassem de assumir a natureza de esmola pública, ou de dádiva dos Governos, mas sim vistos como um direito fundamental e fossem 50% do valor do salário mínimo legalmente constituído e a adopção de um rendimento mínimo garantido para todos os activos desempregados através da criação de um fundo de desemprego, mitigado com um programa nacional de ensino e formação profissional que responda as demandas de emprego; iii) Permitiria assumir metas concretas para adopção dessas medidas de politicas no OGE (Orçamento Geral de Estado) para o ano de 2008; iv) Permitira ainda fazer com que todos os cidadãos em Cabo Verde e na diáspora passassem a ter identidade fiscal, no sentido de sermos todos contribuintes líquidos e sujeito de impostos, independentemente da nossa condição socio-económica.

Para dar o verdadeiro combate a pobreza não me parece existir outro caminho que não seja esse, por isso defenderia que tais reformas fossem desenvolvidas por via de Acordos de Regime entre o MPD e o PAICV, permitindo um compromisso por mais que uma legislatura, renovando o diálogo social e politico com a sociedade, corrigindo os defeitos de uma ideologia estatisante que está em contra - mão com aquilo que a própria Constituição defende e com o sentido das oportunidades que grassam pelo País adentro e que tendem a antagonizar-se com os efeitos do Programa da Luta Contra a pobreza. Pensar que é possível qualificar a nossa democracia e desenvolver o País com quase metade da população fora do circuito económico, com a diáspora sem presença fiscal no País e com o sector informal com um peso enorme na economia, com um Estado que não se sente responsável perante a sociedade e, entretanto, que afirma combater a pobreza e por via disso furtar-se à salvaguarda do direito fundamental dos cidadãos, é uma violência moral contra a cidadania: amiúde, pode dizer-se que o Estado desenvolve uma cultura de arrogância perante os cidadãos que urge eliminar e como ensina o Professor Paulo Sacs. “Essa cultura obstrui a própria liberdade porque impede a mobilidade social e impede os indivíduos de se respirarem livremente ”.

A pobreza enquanto forma de ameaça, não é e nem pode ser considerada, apenas coisa dos pobres. Ela ao ganhar raízes profundas na sociedade assume proporções que terão que ver directamente com a cultura de dependências existentes e celebradas por todo o País também pela classe média e pelas elites: alias, uma elite e uma classe média que na sua configuração sociológica e antropológica surgem, também elas, dependentes do Estado e não se assumem como uma elite e uma classe média na verdadeira expressão do termo e acabam sendo uma extensão dessa omnipresença do Estado. Ouso observar que a nossa elite e a nossa classe média desenvolvem uma estranha relação de dependência com o Estado, embora, muitas vezes, pretendam nega-la. Essa dependência estranha da elite e da classe média cabo-verdiana residentes no País, em relação ao Estado, leva-nos a concluir que não se está perante a pobreza apenas e tão só quando se está em face de penúrias económicas. Está-se também perante condição agravada de pobreza quando estamos perante dependências culturais, ideológicas e intelectuais das elites e da classe média. Isso é também uma forma de manifestação da pobreza.

Não existe combate a pobreza determinado e sério que não tenha por base a ideia de representatividade fiscal dos seus beneficiários. De contrário quaisquer outras iniciativas são de efeito nulo a longo prazo. São os impostos que dão razão financeira e o carácter material das relações entre o Estado e os Cidadãos e é por via de títulos de impostos que se estabelece a relação formal entre o Estado e os cidadãos. Daí que se os cidadãos são pobres e não podem pagar impostos significa isso que o Estado acaba por perder uma parte importante de receitas e tem sempre dificuldades em orçamentar as despesas, ao que algum sentido faz quando o Estado adopte medidas de politicas que apontem para integração fiscal das pessoas, por via de atribuição de posse económico aos cidadãos, de modo que na fase subsequente esses mesmos cidadãos, que hoje são desprovidos de rendimentos, possam ser titulares líquidos de impostos, garantindo, por via da identidade fiscal, e de forma definitiva a sua mobilidade social.
Termino como comecei o fenómeno da pobreza em Cabo Verde faz parte da essência da nossa sociedade, mais é também um dos maiores desafios do Estado de Direito Democrático.

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