quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Homenagem a nossa lingua materna: posso não conseguir escrevê-la, mas é inevitável utiliza-la, em nossas casas, na rua, nos “espaços públicos e privados” que se formam, pois através dela facilmente me faço explicar.

Lembro-me ainda da apologia de José Agualusa, escritor e poeta angolano, numa conferência em Bruxelas em 2009, que dizia, por outras palavras, a mesmíssima coisa que o presidente da República e cito também com a devida vénia: O povo cabo-verdiano é um dos poucos povos do mundo (que ele conhecia) com uma língua oficial e que exprime melodias, cantando noutra língua, numa não oficial, no caso concreto, na sua língua materna conhecido pelo nome de “o crioulo”". Foi, sem dúvida, uma opinião mais ou menos política, a volta de um tema, já de si polémico entre nós, mas lúcida, que causou, na altura, algum comentário na plateia, na medida em que foi expressa por uma individualidade estrangeira, rara e genuína e, julgo, sincera e verdadeira de uma pessoa insuspeita, em relação a tudo o que se possa dizer e escrever sobre Cabo Verde e sobre as suas "coisas". Uma constatação, aliás, que esteve em linha com a agenda politica do país, nessa altura, pois em Cabo Verde aproximava-se o processo de revisão constitucional de 2010, onde a problemática da oficialização do crioulo, sua tematização publica e oficialização, enquanto língua, esteve na ordem do dia, tendo sido profundamente discutida, embora mantendo o desacordo politico, entre as bancadas parlamentares, quanto ao seu reconhecimento formal, como língua oficial do país, embora o seja na constituição da República.

O presidente da República que é um dos suspeitos de costume, quanto à necessidade de valorização da nossa língua materna e a semelhança do que disse José Agualusa em 2009, mas de outra forma, confirma a tese: para ele através da língua-mãe vieram expressas as primeiras mornas, coladeiras, funaná e cola sanjôn que nos deleitaram”, expressão pela qual “captamos o mundo, verbalizamos as nossas sensações e perceções e encomendamos a nossa primeira refeição”. Recordo-me que no âmbito do processo de revisão constitucional de 2010, especialistas foram chamados a opinar e debateram-na entre eles. Uns com argumentos contra e outros com argumentos a favor, em relação ao sentido e oportunidade de se tornar o crioulo (a nossa língua materna) língua oficial, ao lado do português, deixando a perspetiva de que, na óptica dos linguistas, língua é cultura e cultura é poder. Nessas discussões havidas, as questões relacionadas com as variantes da língua materna vinham sempre ao de cima, ao lado da necessidade de o Estado criar as condições para a sua escrituração. Pôs-se sempre a questão: que variante do crioulo escolher? Discorreram, como é timbre nesses debates, sobre as vantagens e desvantagens da adoção do “crioulo” como língua oficial. Hoje a sociedade aceita dar mais um passo - adotar o ensino bilingue, com base no ensino em crioulo e em português, experiência oriunda da nossa diáspora. Boa ideia e boa medida porque não vale a pena não assumirmos o crioulo como língua de ensino, quando na prática esse ensino já é bilingue.

A Constituição da República diz no seu Artº 9º, o seguinte: (…) 1. “É língua oficial o Português; 2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa; 3. Todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usa-las”. A alteração desse articulado constitucional no sentido da oficialização do crioulo foi objeto de muito debate político na revisão de 2010, com o MpD e o PAICV a posicionarem-se, cada um do seu lado, sendo o PAICV abertamente a favor da oficialização e o MPD prudentemente contra, o que não contribuiu para um acordo parlamentar, em sede da revisão, que permitisse adotar a medida e oficializar a nossa língua materna, quedando-se muitas vezes pelo reducionismo sobre as variantes do "crioulo" existente em cada ilha. Mas o processo da oficialização do crioulo é um caminho que tem de se fazer, porque inevitável - pois pode dizer-se que ao exprimir-se em crioulo o cabo-verdiano reduz a tensão individualista que sobre si recai, em detrimento da sua expressão coletiva. Exprimindo-se em crioulo somos mais povo, somos mais nação e somos mais país aqui dentro e na nossa diáspora. 


Tanto na parte inicial com os especialistas, nas diferentes audições ao nível da Comissão Eventual, como na sua parte final na plenária, em sede do debate para a alteração do referido artº 9º, deixou-me, cada vez mais, convencido de que não tardará o dia em que o crioulo se tornará língua oficial e formal da nação. Já o é. Falta ser reconhecido como tal: nessa altura, fiquei também convencido, embora tivesse, por altura da votação do artº 9º, votado com o meu grupo parlamentar, de que a oficialização do crioulo era inevitável num futuro próximo. Tornar-nos-ia mais fortes, mais coesos e mais unidos, enquanto povo. A linha de continuidade- a traçabilidade da nossa identidade e da nossa cultura teriam um novo veículo, que sendo popular falta ser reconhecido legalmente - ou a unidade orgânica, comunicativa e linguística do Estado com a nossa diáspora, em diferentes países (dos diferentes mundos) que acolhem a nossa gente, sairiam reforçadas e as suas variantes que concomitam das diferentes ilhas tornariam em fonte do seu enriquecimento.

O reconhecimento do crioulo como língua oficial pode ser feito não apenas a custa da posição que ocupamos no mundo em relação à comunicação global erigida hoje pela nação cabo-verdiana nos diferentes cantos do mundo e não por causa das diferentes "diglossias" adquiridas, em cada momento histórico do país, pelos contactos realizados com outras línguas, especialmente a portuguesa, mas por uma questão, genuinamente política, social, cultural e comunitária, que decorre do seu valor real na projeção da nossa “identidade sociocultural“ coletiva. Mas de 90% da comunicação diária desenvolvida no país é feita em "língua materna", ou crioulo. A língua materna reflete e transporta a carga do interesse vital do país. O crioulo é veículo natural do seu processo de desenvolvimento económico e social, porque envolve toda gente e é fonte da nossa nacionalidade e determinante inequívoco da cabo-verdianidade, pois não se consegue ser Cabo-verdiano sem se apreender a exprimir-se em crioulo, não importando as suas diferentes variantes. O contra-argumentário para se recusar o não reconhecimento da nossa língua materna, como língua oficial passou a ser muito frágil e de difícil sustentação teórica.

A oficialização do crioulo permitiria maior clareza na relação dos cabo-verdianos, com outros povos e culturas, tendo presente, e em consideração, exatamente o facto de sermos Nação diasporizada, onde a exigência do intercâmbio sociocultural, a cedência “dual” e múltipla, a transação e “troca por troca” de elementos da identidade nacional que se formulam entre nós, na nossa relação com outros povos e culturas, que visitamos e que nos visitam, se afirmam como necessariamente vital. Nesse longo processo histórico de afirmação da nação cabo-verdiana no mundo, a oficialização do crioulo, como língua, pode vir a manifestar-se como essencial e determinante, por causa dos “determinantes coletivos” do sucesso individual de cada um de nós, maximé, do sucesso do processo de "integração da nação cabo-verdiana no mundo globalizado", do seu processo de desenvolvimento económico e social e do sucesso do processo de integração das nossas comunidades nos países de acolhimento.

Na minha modestíssima opinião, a comunidade política nacional deveria fazer tudo para que o crioulo fosse adotado, na CRCV, como língua oficial do país, como obrigação moral da classe politica e por causa das vantagens não declináveis, que a oficialização do crioulo trazia ao país, pois, em si, a decisão permitiria que os investigadores tão depressa pusessem mãos-à-obra para tornar a nossa língua materna escrituravel, independentemente da sua posição secundariamente "formal-atual" que hoje ocupa em relação ao português e em relação a certos complexos quantas às diversas variantes existentes, em cada uma das nossas ilhas e a nível da nossa diáspora.

Uma língua, dizem os especialistas, na sua dimensão cultural e social, deve ser facilitadora da comunicação e razão de compreensão comunitária, sendo também fonte da promoção das "verdades idiossincráticas" das comunidades, no fomento da tolerância e paz social, por que engendra e facilita o diálogo e a compreensão entre pessoas e comunidades., entre nós, cada vez, mais necessário, como variável-força, na relação entre pessoas, entre as ilhas e entre o país e a sua diáspora: fosse isso a única razão, ainda assim fazia todo o sentido aprovarmos o crioulo com língua oficial. Aí o crioulo teria, também, um papel fundamental a desempenhar, pelo que pode contribuir para reduzir as dinâmicas conflituantes que grassam na nossa sociedade, especialmente nas camadas mais jovem das nossas populações e permitir que o Estado se erija como líder perfeito na promoção desse diálogo social, porquanto passaria a dispor de um elemento vital, na comunicação que desenvolve com os cidadãos.

A estratégia da oficialização do crioulo deveria, por outro lado, assumir a nossa condição social de realidade cultural bilingue e permitir ensinar o inglês, o francês, o espanhol, o alemão e porque não o "mandarim", nas nossas escolas, do básico ao secundário, passando pelas nossas universidades, de molde a promover um convívio salutar entre o crioulo e várias outras línguas, resolvendo as «diglossias linguísticas que se apontam» e produzindo um tipo de seleção, susceptível de enriquecer o vocabulário do crioulo e reduzir as suas cominações, quando em contacto e diálogo com outras línguas, facilitando a vida ao Estado, que tendo a obrigação constitucional de criar as condições de paridade da língua materna, com a língua portuguesa, utiliza a língua no dialogo politico com os cidadão, embora negando a sua oficialização à nação, adiando o processo e recusando criar as condições para que essa oficialização seja efetivada.

A CRCV adota muitas coisas que, sendo concretizadas, poderiam fomentar a realização plena da constituição e que têm vindo a ser adiadas, ao longo das várias legislaturas, impedindo acordos de regimes, tais como a oficialização do crioulo, já de si o celebre salário mínimo nacional, o provedor da justiça, o tribunal constitucional, o conselho económico-social e ambiental e o conselho das comunidades. Neste sentido, importa reter todas as oportunidades em relação à possibilidade de oficialização do crioulo, para podermos vir a recuperar o tempo perdido, pois se por um lado, a sociedade cabo-verdiana, na sua expressão linguística formal e institucional aceita, como natural, que o português tenha primazia sobre a língua materna cabo-verdiana, por ser a língua «escriturável», que cultural e historicamente nos é mais próxima, por outro lado, a cultura cabo-verdiana parece confirmar, nessa mesma expressão, desta feita popular e politica, a recusa em deixar que a língua portuguesa seja, do ponto de vista social, considerada isoladamente nessa sociedade que é bilingue, negando existir dependência formal entre o português e o crioulo, o que pode ditar a circunstancia de que as duas línguas, podem seguir caminhos autónomos, salvaguardando as necessárias sincronias, a sua relação e a sua complementaridade, não permitindo que a sociedade cabo-verdiana, por hipóteses académico, venha sentir-se forçada, no futuro, a colocar outra língua estrangeira a ocupar a posição atual que o português ocupa em Cabo Verde
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Pode concluir-se, dizendo que existe uma "corelação positiva" entre a língua portuguesa e o crioulo, que tornaria inevitável a necessidade da sua oficialização, sem a qual, alias, não se conseguirá produzir quaisquer garantias futuras de que o português não venha a perder a sua atual posição ao nível da sociedade cabo-verdiana, em relação a outras línguas estrangeiras. Numa palavra: parece dual, mas ao se oficializar o crioulo, protege-se, na minha opinião, o português e a sua primazia em relação às demais línguas estrageiras ensinadas hoje e no futuro nas nossas escolas. O desafio é, não obstante, ingente, pois nos obriga a optar e pode estar na forma como gerimos a disputa das posições existentes entre as duas línguas, designadamente no concernente a primazia de uma, em relação a outra, facto que confirma a opinião dos especialistas de que, sem tomarmos a devida consciência desse facto, mantendo tal qual ela se configura hoje, a expressão relacional das duas línguas na sociedade cabo-verdiana fica diminuída, porque não se complementam, não trocam elementos entre si e continuariam a haver disputas de posições entre as mesmas, quando a dialética poderia ser a de interdependência e complementaridade, para que o Cabo-verdiano possa também exprimir-se, quando canta, também em português.

Ao se recusar a oficialização do crioulo, incorre-se num erro de cálculo em relação ao futuro, pois não estamos a contribuir para a redução de um risco geracional implícito existente hoje, que parece grassar-se no nosso sistema educativo de que, a um certo nível, nas nossas escolas, os professores, por dificuldades técnicas, ensinem línguas estrangeiras em crioulo, designadamente o português que é nossa língua oficial, fazendo com que curiosamente o português ficasse formalmente a depender-se do crioulo. É evidente que essa dependência fragiliza social e politicamente o português, sendo também geradora de múltiplos complexos. É, a meu ver, nessa relação de dependência que se situa o problema central, porque demonstra que decorridos quase três décadas após a independência do país, o português, caracterizado, na altura e politicamente, como língua do colonizador, portanto de opressão politica, que teve de ser inevitavelmente assumido como língua oficial do país, posiciona-se, na memória coletiva, como realidade cultural a combater, fazendo esquecer-se que em português também nos afirmamos como nação e como Cabo-verdianos. Aparentemente ao percorrermos as comunidades cabo-verdianas na diáspora, verificamos que as mesmas, na sua vivência diária, entre os seus membros, exprimem-se em crioulo, parecendo existir, mesmo, uma barreira que se torna mais difícil de se transpor pela língua portuguesa, fazendo com que o crioulo se afirme, em certas circunstancias e ironicamente como língua de resistência cultural, negando concomitantemente a presença da língua portuguesa, quando na verdade não é isso que acontece, embora gerando espaços culturais fechados (realidade que são visíveis na nossa diáspora), dificultando o sucesso de integração das nossas comunidades nos países de acolhimento, porque reduz a expressão comunicacional entre os nossos emigrantes e os cidadãos de países de acolhimento, sobretudo os não lusófonos, quando a língua portuguesa dá extensão e profundidade a capacidade de comunicação global aos cabo-verdianos.







Este sentimento de pertença e de negação, na nossa expressão cultural diária, sem darmos por isso, escrutina a aceitação do português, como veículo linguístico único e isolado do povo cabo-verdiano, especialmente quando está em causa a necessidade de “glissar” expressões da nossa identidade que são manifestamente, e em especial, alimentadas em crioulo, sobretudo através da música. Deste modo, podemos dizer que teve razão José Agualusa ao fazer tal afirmação, motivo do título deste apontamento. Poderia não haver Cabo-verdiano algum que fosse contra a oficialização da sua língua materna e que ao mesmo tempo se posicionasse no sentido contrário à necessidade de aprofundamento do ensino nas nossas escolas das principais línguas estrangeiras, consideradas línguas de propensão global ao lado da língua portuguesa. O Estado que nos representa não pode deixar de pensar que seria muito bom se as suas instituições assumissem exprimir-se formalmente em crioulo, na medida em que já o fazem todos os dias, no contacto com as populações, apesar da exiguidade escritural da mesma enquanto língua, ao mesmo tempo que fomentaria a utilização do português, pois que o povo guarda a sua identidade através do crioulo e através do português e também em outras línguas, quando fora do território nacional.

Os especialistas dizem que a língua que tem maior força social numa comunidade, tende a identificar, selecionar e atrair a língua que lhe é mais próxima. Nesse caso, a língua materna cabo-verdiana tem maior força social entre nós do que o português, mas como o português é língua que se lhe associa de forma sincrónica e lhe é mais próxima, ela identifica-a, atraindo-a e selecionando-a, como parceira na projeção da expressão linguistica do Cabo-verdiano. Uma alimenta a outra. Uma  complementa a outra e vice-versa. Uma, naturalmente, facilita e sustenta a outra.
Tal relação de aparente supremacia social do crioulo em relação a língua portuguesa, tende a negar/afirmar tão-somente o facto de a língua portuguesa não transportar a totalidade dos elementos da identidade nacional cabo-verdiana, embora aceitando, com naturalidade integrar a nossa condição de comunidade bilingue, utilizando em contraposição e de forma combinada a lingua materna e a nossa língua oficial - o português.

Bem-haja o dia 21 de Fevereiro - Dia da Lingua Materna.